Miro o corpo diante de mim – tenso, contraído, sustentando um peso que não sei nomear.
Os ombros erguidos parecem carregar algo maior que a rotina pesada. O olhar baixo evita encontros. A respiração curta não se aprofunda, como se buscar ar fosse perigoso. O corpo fala antes mesmo das palavras chegarem.
A voz sai hesitante: “Não sei por que me sinto assim.”
Mas a história vem antes da explicação. O que se sente hoje pode ter raízes muito mais antigas do que se imagina.
A Dor Que Passa de Geração em Geração
Há traumas que são vividos e lembrados. Outros são vividos e silenciados.
E há aqueles que nunca foram vividos por quem os sente – mas, ainda assim, estão ali, alojados na pele, no comportamento, na memória inconsciente do corpo.
Os pesadelos que se repetem sem lógica.
O medo da escassez, mesmo quando nada falta.
A sensação de abandono, mesmo cercado de afeto.
O trauma transgeracional não precisa de palavras para existir. Ele se infiltra nos gestos, na forma como alguém se encolhe ao falar, na ansiedade que chega sem motivo. Ele se espalha pelas famílias como um eco: o que não foi elaborado antes se manifesta depois.
A avó que sobreviveu a uma guerra, e o neto que sente medo constante, mesmo sem ter vivido uma tragédia.
A mãe que nunca chorou a perda que sofreu, e a filha que carrega uma tristeza sem nome.
A geração que passou fome, e os descendentes que acumulam, temendo perder tudo.
Não basta esquecer. O que não é visto continua procurando uma forma de existir.
Quando o Corpo se Torna o Mensageiro
O corpo guarda o que a mente não processou.
Ele fala através da insônia que não tem explicação.
Da tensão que nunca se desfaz.
Das dores crônicas que resistem a qualquer tratamento.
Ele pede escuta, pede espaço, pede nomeação.
Os sintomas são muitas vezes a única forma que o trauma encontra para ser reconhecido. Como uma criança que chora até que alguém a acolha.
E talvez, no fundo, seja isso: um pedido de acolhimento. Uma história que quer ser contada para que possa, enfim, descansar.
O Que Fazer Com o Que Herdamos?
Nem tudo o que nos atravessa precisa ser carregado.
O trauma pode ser herdado, mas a cura também.
A psicogenealogia nos ensina a olhar para trás sem ficar presos lá. A reconhecer os fios invisíveis que nos ligam ao passado, mas escolher o que queremos continuar tecendo.
Ao nomear o que antes era só sintoma, ao contar a história que ficou suspensa, algo se transforma. O peso nos ombros afrouxa. O peito encontra espaço para respirar.
E, aos poucos, o que parecia destino se revela possibilidade. O que parecia um ciclo se abre em caminho.
O passado não muda, mas o lugar que damos a ele, sim.
E quando escolhemos olhar, quando decidimos acolher, algo se desata.
E o corpo, enfim, descansa.