Foi por meio da Psicogenealogia que passei a examinar com mais profundidade a linhagem da minha avó Didi. Suas origens são permeadas por lacunas e narrativas fragmentadas, marcas de um passado que se impõe silenciosamente na história familiar.
Seu pai deixou o interior do Rio de Janeiro ainda criança para trabalhar na construção da ferrovia. As circunstâncias desse deslocamento permanecem obscuras: não se sabe ao certo se foi entregue, vendido ou se fugiu. O que é certo é que chegou a Minas Gerais e ali construiu sua trajetória como operário da Rede Ferroviária.
A mãe dela, minha bisavó, foi parteira e teve dois filhos. Faleceu jovem, antes de alcançar a idade que tenho hoje. Ao revisitar documentos familiares, descobri que carrego também o nome da avó dela: Margarida Carolina. Ela foi registrada assim, sem sobrenome, um dado que por si só revela muito sobre as dinâmicas de apagamento que atravessaram a história das mulheres da minha família. Meu pai, ao ver a certidão de nascimento, ficou surpreso – nunca havia notado essa coincidência. Mas as transmissões inconscientes são uma constante nos sistemas familiares, operando além da nossa percepção imediata.
O Espaço da Memória e as Narrativas da Infância
Nasci na casa da minha avó e, durante boa parte da infância e adolescência, transitei por aquele espaço como quem ocupa um território de afeto e pertencimento. No entanto, não tive a oportunidade de conhecê-la enquanto sujeito para além dos papéis sociais que lhe foram impostos.
Durante muito tempo, incomodava-me ouvir que eu me parecia com ela. Hoje, compreendo melhor a razão desse desconforto. Minha avó viveu em um tempo que limitava a expressão feminina, e ainda assim encontrou maneiras – muitas vezes subversivas – de dar forma ao que a atravessava. A perspectiva mudou: o que antes soava como um fardo, hoje reconheço como um traço de resistência, um legado que não se limita à carga genética, mas se manifesta em gestos, escolhas e impulsos que moldam minha própria trajetória.
Minhas recordações infantis são marcadas por noites em que, ao lado dos primos, ouvíamos suas histórias sobre o caboclo d’água. Ela não as contava como ficção – reivindicava sua descendência desse ser mítico. Mais tarde, compreendi que essas narrativas eram, na verdade, relatos codificados sobre nossos antepassados, fragmentos de uma cultura ancestral que resistiu à erosão do tempo.
Legados Invisíveis e os Caminhos do Desejo
Minha avó foi uma presença transgressora na minha infância. Era ela quem, às escondidas do meu pai, me concedia pequenos luxos: cachorro-quente, chocolate, voltas intermináveis no trenzinho da alegria. Esses momentos furtivos de cumplicidade desenhavam um outro tipo de transmissão, mais sutil, mas igualmente estruturante.
Embora não tenha lembranças precisas sobre quem me preparava para a escola, há uma cena gravada na memória: ela me levando ao seu quarto, passando batom e perfume em mim – e no meu cabelo –, enfatizando que era fundamental ir para a escola bonita e cheirosa. Minha avó não abria mão de certos símbolos de feminilidade: o batom vermelho e o esmalte impecável eram quase uma assinatura.
Engravidou cedo, casou apaixonada, teve filhos ainda muito jovem. Mas será que tinha desejos que transcendiam o casamento e a maternidade? Será que vislumbrava outros caminhos possíveis para si? Essas perguntas permanecem sem resposta.
Ela não me viu concluir os estudos, tampouco testemunhou minhas escolhas profissionais. Ainda assim, reconheço sua presença em aspectos que ultrapassam a linearidade do tempo. Dela, não herdei apenas o nome, a cor e as dores.
Herdei a capacidade de insurgência.
Herdei a força que resiste ao silenciamento.
Herdei a conexão visceral com a natureza e o ímpeto por liberdade.
E é nesse reconhecimento que me encontro.